Skip to main content

Multiverso

(Trabalho em parceria com João Pacca – Work developed with João Pacca)

Há algo abominável a respeito das câmeras, porque elas têm o poder de inventar muitos mundos. Como artista que vem há muito se perdendo no campo selvagem da reprodução mecânica, eu não sei com que mundo começar.

Robert Smithson

A perplexidade expressa por Smithson nesse texto – A Arte Através do Olho da Câmera (1971) – pode nos ajudar a deixar de fora alguns preconceitos a respeito da fotografia antes de adentrarmos o campo simbólico de Multiverso – o mundo inventado por João Pacca e Marcelo Carrera –, pois este começa justamente com o desafio à nossa capacidade de entender onde estamos e de nomear o que vemos.

Este certamente não é o mundo com o qual estamos familiarizados. E nosso estranhamento não se resume ao fato de que os contornos nítidos das formas figurativas, que costumam ser o traço distintivo do registro fotográfico, aqui tendem à abstração – resultado da perda de nitidez provocada pelos tempos longos de exposição, pela presença de amplos planos desfocados e pela insidiosa presença das sombras. Em Multiverso, a atmosfera sobrenatural, se impõe para além de sua ambientação no espaço físico da natureza.

O caráter idílico das imagens logo nos transporta para a dimensão dos sonhos e suas formas misteriosas de existência. Aqui, plantas, pedras, grutas, rios e cachoeiras funcionam como cenário anímico no qual nosso personagem se movimenta.

Ao tentar compreender o que se desenrola nesse cenário, esbarramos em um conjunto híbrido de elementos mitológicos clássicos, sem que possamos reduzi-lo a nenhum mito específico. O belo Narciso, a clarividência de Apolo, a embriaguez de Dionísio, o Hades implacável e muitas outras personificações de divindades povoam essa história, metamorfoseadas. Nesta narrativa alegórica, corpo, espaço e câmera ensaiam um tipo de dança cosmogônica potente o suficiente para reencenar seus ritos pessoais e, a partir deles, reinventar seus mitos.

São gestos e atitudes simbólicas que evocam algum tipo de celebração ou sacrifício. Caso seja um culto, não resta dúvida de que se trata de uma forma de religiosidade panteísta, primitiva, pagã. A relação íntima e sensual com os elementos naturais é a força que move este corpo-espírito que, como uma divindade imanente, nos faz perceber que a natureza é construída como experiência sensível e é capaz de sacralizar o ato prosaico e o profano.

Como toda narrativa mítica, o tempo aqui não é nem linear, nem cronológico, mas cíclico e atemporal. Numa leitura que não exclui sua pluridirecionalidade, parece tratar-se de uma história arquetípica: a jornada do herói em sua busca do autoconhecimento que se sabe autofabricação – autopoiesis, para usar a expressão de Maturana. Neste território de passagem entre a natureza e a cultura, não poderia faltar a crise do enfrentamento da própria sombra, a interdição, o tabu, e sua transcendência/ transfiguração simbolizada pela experiência de morte/renascimento.

Diferentemente da fábula, em geral acompanhada de um ensinamento moral edificante e didaticamente transmitido, a narrativa de Multiverso é aberta e amoral. Os artistas aqui se projetam como que num transe, num êxtase que se apresenta como narrativa subjetiva, verdadeiramente catártica, tendo em vista o contexto cultural a que pertencem, moderno, industri

By Simone Rodrigues

 

“There is something abominable about the cameras because they have the power to invent many worlds. As an artist who has, for too long, been lost in the wild field of mechanical reproduction, I do not know which world I can begin with.”

Robert Smithson

The perplexity expressed in this text by Smithson – “The Art Through the Eye of the Camera (1971)” – Can help us to leave out some preconceptions about photography before we enter the symbolic field of Multiverse – the world invented by John Pacca and Marcelo Carrera -, because it starts precisely with the challenge to our capability to understand where we are and to name what we see.

This is certainly not the world with which we are familiar. And our estrangement doesn’t concern to the fact that the sharp contours of figurative forms, which tend to be the distinctive element of the photographic record, here tend to abstraction – a result of the loss of sharpness caused by long times of exposure, the presence of large plans unfocused and by the insidious presence of shadows. In Multiverse, the supernatural atmosphere is imposed beyond its setting in the physical space of nature.

The idyllic character of the images immediately transports us to the dimension of dreams and their mysterious ways of existence. Here, plants, rocks, caves, rivers and waterfalls work as a mental scenario in which our character moves. When we try to understand what is unfolded in this scenario, we bump into a set of hybrid classical mythological elements, without narrowing it down to any specific myth.

The beautiful Narcissus, the clairvoyance of Apollo, the intoxication of Dionysus, the merciless of Hades and many other personifications of divinities fill this story, all metamorphosed. In this allegorical narrative, body, space and camera rehearse a kind of a cosmogony dance, powerful enough to re-enact their personal rites, and, from them, reinvent their myths.

These are symbolic gestures and attitudes that evoke some kind of celebration or sacrifice. If it is a cult, there is no doubt that this is a form of pantheistic religiosity, primitive, pagan. The intimate and sensual relations with natural elements is the force that moves this body-spirit that, as an immanent divinity, makes us realize that nature is constructed as sensible experience and is capable of sanctifying the profane or prosaic acts.

Like all mythic narratives, the time here is neither linear nor chronological, but cyclical and timeless. In a reading that doesn’t exclude its pluridirectionality, it seems to be an archetypal story: the hero’s journey in his quest for self-knowledge, which is known self-fabrication – autopoiesis, to use the expression of Maturana.

In this territory of passage between nature and culture, it would be impossible not to mention the crisis confronting the shadow itself, the interdiction, the taboo, and its transcendence/transfiguration symbolized by the experience of death/rebirth.

Unlike the fable, usually accompanied by a moral and edifying teaching, transmitted didactically, the Multiverse’s narrative is open and amoral. The artists here are projected as in a trance, an ecstasy that presents itself as a subjective narrative, truly cathartic, having in sight the cultural context which they belong, modern, industrial, urban, technological, whose dominant point is, undoubtedly, skepticism.

Simone Rodrigues

 

LINK Look the book here

Simone Rodrigues

Hay algo abominable respecto las cámaras, porque ellas tienen el poder de inventar muchos mundos. Como artista que viene hace mucho perdiéndose en el campo salvaje de la reproducción mecánica, yo no sé con qué mundo empezar. Robert Simithoson

La perplejidad expresada por Smithson en ese texto – El Arte A través del Ojo de la Cámara (1971) – puede ayudarnos a dejar de fuera algunos prejuicios respecto la fotografía antes de que entremos en el campo simbólico de Multiverso – el mundo inventado por João Pacca y Marcelo Carrera – , pues ese comienza justo con el desafío a nuestra capacidad de entender donde estamos y de nombrar lo que vemos.

Este ciertamente no es el mundo con el cual estamos familiarizados. Y eso que nos parece raro no se resumen al hecho de que los contornos nítidos de las formas figurativas, que suelen ser el trazo distintivo del registro fotográfico, aquí tienden a la abstracción – resultado de la perdida de nitidez provocada por los largos tiempos de exposición, por la presencia de amplios planos sin foco, y por la insidiosa presencia de las sombras. En Multiverso, la atmósfera sobrenatural, se impone para más allá de su ambientación en el espacio físico de la naturaleza.

El carácter idílico de los mensajes luego nos transporta para la dimensión de los sueños y sus formas misteriosas de existencia. Aquí, plantas, piedras, grutas, ríos y cascadas funcionan como escenario anímico en el cual nuestro personaje se movimienta.

Al intentar comprender lo que se desarrolla en ese escenario, tropezamos en un conjunto híbrido de elementos mitológicos, clásicos, sin que podamos reducirlo a ningún mito específico. El bello Narciso, la clarividencia de Apolo, la embriaguez de Dionisio, el Hades implacable y muchas otras personificaciones de divinidades pueblan esa historia, metamorfoseadas.

En esa narrativa alegórica, cuerpo, espacio y cámara ensayan un tipo de danza cosmogónica potente lo suficiente para reescenificar sus ritos personales y , a partir de ellos, reinventar sus mitos. Son gestos y actitudes simbólicas que evocan algún tipo de celebración o sacrificio. Caso sea un culto, no resta dudas de que se trata de una forma de religiosidad panteísta, primitiva, pagana.

La relación íntima y sensual con los elementos naturales es la fuerza que mueve este cuerpo – espíritu, que como una divinidad inmanente, nos hace percibir que la naturaleza es construida como experiencia sensible y es capaz de sacralizar el acto prosaico y lo profano.

Como toda narrativa mítica, el tiempo aquí no es ni linear, ni cronológico, mas cíclico y atemporal. En una lectura que no excluye su pluridireccionalidad, parece tratarse de una historia arquetípica : la jornada del héroe en su búsqueda del autoconocimiento que se sabe autofrabricación – autopoiesis, para usar la expresión de Maturana. En este territorio de pasaje entre la naturaleza y la cultura, no podría faltar la crisis del enfrentamiento de la propia sombra, la interdicción, el tabú , y su transcendencia / transfiguración simbolizada por la experiencia de muerte / renacimiento.

Diferentemente de la fábula, en general acompañada de un enseñamiento moral edificante y didácticamente transmitido, la narrativa de Multiverso es abierta y amoral. Los artistas aquí se proyectan como que en un transe , en un éxtasi que se presenta como narrativa subjetiva, verdaderamente catártica , teniendo en vista el contexto cultural que pertenecen , moderno, urbano, tecnológico, cuya nota dominante es, sin duda, el escepticismo.

Simone Rodrigues

 

LINK Look the book here

Por Jane Maciel

Notas sobre o ensaio fotográfico de Marcelo Carrera e João Pacca

o corpo nu
é o corpo da dobra

o que sobra
depois
e antes
de tudo o que cobre

adereços

Dentro de uma mata ou em uma cachoeira o corpo nu se apresenta em um estado misto de epifania e mimetismo. Corpo-água ou corpo-pedra. A fluidez e a rigidez intercalam o movimento desse corpo-forma que o ensaio fotográfico de Marcelo Carrera e João Pacca produz e apresenta. Produção porque este corpo nu performa frente ao aparelho fotográfico, compartilhando a cena com intensa cumplicidade. Apresentação porque o objeto estético – fotografia – materializa e nos faz ver em preto e branco essa vivência íntima do humano na natureza, ou vice-versa. Poderíamos dizer que tais imagens tentariam justamente diluir esta separação tão moderna, rígida e purista.

Multiverso libera o corpo nu não para ser mais um elemento na paisagem, mas para ser a paisagem, ou ainda, encarnar na paisagem fotográfica. Este corpo também resignifica a divisão de gêneros, uma vez que o adjetivo “masculino” não parece abarcar totalmente a sua presença (mesmo se o desenho dos músculos enrijecidos nos remeta a alguma ideia de masculinidade). Ao fundir-se com água tal corpo veste-se deste feminino líquido e pode também assumir sua forma fluida. Por outro lado, no mesmo ensaio vemos este corpo transfigurar-se em outros estados: animalesco, apreensivo ou mesmo arredio, escondendo-se ou estando prestes a dar um bote.

O escuro desse ambiente coloca-nos em uma atmosfera onírica e por vezes quase mítica, como nos indica as poucas fotos nas quais o corpo está ausente – intervalos desse sonho trêmulo – e mais ainda, como confirmam aquelas nas quais o corpo aparece. Pois quando nos deparamos com uma enorme queda d’água, com seus níveis rochosos e uma figura apoiada na pedra, com a água caindo e escorrendo por seu corpo, não vemos necessariamente um “homem”, mas um “ser” que habita esse mundo, que esteve ali por um momento e que só podemos ver pela fotografia. O espelhamento desta imagem abre uma fenda ao meio, que faz convergir o movimento das águas, por onde nosso olhar pode penetrar.

Em Multiverso são os processos que estão em jogo. Não se trata de uma visada documental da natureza e/ou do humano nela, nem tampouco uma relação “instrumental” do corpo humano na fotografia de paisagem[1]. É sobretudo uma experimentação de territorialização nesse ambiente natural, na qual o corpo – nu – pode inclusive fundir-se ou ensaiar seu desaparecimento etéreo, seja pela subexposição que enfatiza as zonas pretas nas fotos, pelo desfoque proposital ou ainda pelo movimento que faz do corpo um borrão fugidio.

A fotografia da queda d’água precipitando sobre um dorso evoca uma intenção quase ritual deste banho. O encontro da água com o corpo propicia uma rachadura no seu movimento e espessura, e forma na poça d’água nervuras impressas como asas brancas decaídas, ilustrando metaforicamente que a queda é movimento natural da vida e que nela pode estar contida a sua potência. Essa figura decaída parece inerte e ao mesmo tempo guarda o prenúncio do seu próximo movimento. O ritmo descendente da água complementa-se à iminência do levantar-se, ao passo que a foto nos aparece sonora, em alguma medida, aquele zunido da pressão da queda d’água na cabeça. Ou som das nossas próprias quedas. Despir-se e se entregar como exercício de liberdade.

*

Multiverso é um ensaio fotográfico realizado pelos fotógrafos Marcelo Carrera e João Pacca.

O projeto iniciado em 2013 é uma parceria que vem se estabelecendo através de vivências criativas nas quais os aspectos de produção e edição da fotografia são partilhados, bem como as propostas de dinâmicas performativas e os aspectos conceituais.

[1] Como acontece, por exemplo, nas intenções em criar uma referência de tamanho e proporção no enquadramento ou mesmo em reafirmar o aspecto de descobrimento da natureza pelo fotógrafo aventureiro. Tais estratégias eram recorrentes, por exemplo, no trabalho do fotógrafo Marc Ferrez, um dos pioneiros da fotografia brasileira no século XIX. Ferrez solicitava aos acompanhantes de suas aventuras fotográficas que se posicionassem diante da paisagem e neste caso, a grandeza e amplitude da natureza opõem-se à pequenez do humano, e a ênfase está justamente nessa oposição e diferença.

Por Susana Guardado

 

“Enquanto o sonho é o jogo do homem individual com o real, a arte do artista (em sentido lato) é o jogo com o sonho.”

Nietzsche

A paisagem como epiderme da cidade e a relação com essa proposição, nos dá a percepção da nossa Natureza construída como experiência sensível.

É da simbiose do indivíduo com o natural-universal que a série fotográfica Multiverso, propõe gerar composições visuais centradas na imagem do corpo a partir da experiência do sublime face ao território.

São fotografias em preto e branco de corpos e elementos que ocupam a paisagem buscando a beleza dos movimentos em harmonia com o que os rodeia.

O ensaio fotográfico nasce de experimentações com artistas convidados por Marcelo Carrera e João Pacca inseridos na natureza , em lugares que servem como portais entre natureza e urbano.

É na sua transposição que cada individuo, a seu tempo, sobe a esse palco natural e se deixa entregar, procurando perceber o corpo em todos os seus sentidos.

As imagens nascem desse encontro que pretendem pensar a experiência sutil entre o corpo e o ambiente de dentro para fora e vice-versa, seus limites ou a ausência deles.

Estamos diante da imagem-força da cidade do Rio de Janeiro, nos conduzindo para um olhar que não é somente o exercício desse sentido, mas sim uma produção de sua significação, uma matriz de experiências de espaço e de tempo.

Paus, pedras, caminhos como no verso da canção, a natureza em potência rompe a temporalidade, juntos com os corpos fotografados trazem um entendimento da figura atenta a proposições de modelos de vivência instintiva, determinando a abertura para o mundo da experiência do belo e do sublime – um lugar na fronteira do sonho e da existência, onde o homem e natureza se reconciliam. A cada imagem se abrem possibilidades para o lugar da contemplação, num jogo com os limites do tempo, em que experiência de contemplar está no “tempo” do sonho.

Nas paisagens e nos retratos há expressões de nossos sonhos e medos, de nossos segredos e desterros, de nossas esperanças e nossos dramas.

Multiverso é uma experimentação que nos leva para além da imagem, é a transfiguração do físico no simbólico.

São retratos na paisagem natural, que se tornam portadores de representações explícitas e/ou implícitas de um modo de ser e de estar no mundo.

É a experiência concreta do viver com o outro, plena de vida e, por isso, a pele que em todos seus sentidos exprime a nossa diversidade e pluralidade