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No aço frio da sua presença

(Trabalho em parceria com Tatiana Guinle – Work developed with Tatiana Guinle)

No aço frio da sua Presença

Por Bia Dias

 

Conhecemos todos a nudez. Mas é preciso perdê-la de vista se quisermos reencontrá-la. Eis a mola do erotismo evidenciado no belíssimo trabalho fotográfico de Tatiana Guinle NLE e Marcelo Carrera.

“Este corpo fala”, dizia Lacan. Suspenso entre dois silêncios – o da vida e o da morte – o erotismo é o que faz lembrar do confronto, com um surpreso e confuso balbuciar oriundo do corpo. Neste sentido, são imagens, que podem ser apreendidas através das experiências da aura e do estranho – lugares que se abrem e nos incorporam.

O caráter estranho da imagem reside na capacidade de inquietar e impor sua visualidade como uma distância, por mais próximo que dela estejamos, distância essa situada entre o que se oculta e o que se revela na cisão aberta pelo olhar.

” No aço frio de sua presença” é uma série de fotografias que nos revela imagens belas e perturbadoras em permanente abertura diante de nós. Se o teatro da nudez é erótico em si mesmo, é porque ao ser tocada (profanada) enquanto objeto sagrado, a nudez leva ao erotismo essencial: fusão e supressão dos limites.

Nas fotografias em preto e branco há uma materialidade que aponta para uma abertura, para um lugar onde o ver é inquietado, um espaço onde algo estranhamente se mostra. Mas, o que seria isso, que retorna em meio às imagens como estranho?

Didi-Huberman, um dos críticos de arte mais precisos da imagem, considera que a obra é sempre portadora de algo já visto que volta subterraneamente como fantasma, atravessando e mesclando diferentes temporalidades pelos arremessos fragmentários da memória. Suspensa entre dois começos, a imagem se refere tanto àquilo que se faz bloco de sensações num dado momento, como também àquilo que é trazido pelas forças pretéritas, que não cessam de retornar como sobrevivência póstuma ou potência associada ao rebatimento do passado no presente, questão que confere à imagem um caráter de espectralidade, fascínio e fantasmagoria.

Na concepção freudiana, o estranho tem uma ligação direta com o olhar, com o que causa estranheza, por revelar conteúdos reprimidos de nós mesmos, porque mostra o vazio encenado na forma.

As fotografias de Tatiana e Marcelo inquietam a visão. São lugares onde se reproduzem realidades misteriosas com o erotismo participando na instauração de outra realidade, transfigurando as experiências e o próprio sentido da natureza circundante. O corpo aberto à nudez, em seu excesso, em sua falta, em seu desamparo, no descomedimento e na contenção, no excesso, na violência e destruição. Fotografia que não faz concessões e onde existe uma ação contínua que se afirma no vaivém entre o limite e o ilimitado. Segundo Bataille, roçamos o limite pela primeira vez ao excedê-lo – pensamos tê-lo ultrapassado, mas somente nos aproximamos dele, porque há um impossível que é o imutável, o fundo das coisas. Criar um possível (humano) na medida do impossível é a transgressão – duplo movimento que conduz à surpresa, ao segredo, ao imprevisto.

Sempre extrema, a nudez é uma imagem fronteiriça que, embora esteja à frente, jamais pode ser conquistada. Há algo de inatingível no corpo que se apresenta nas fotografias. No aço frio de uma presença que também é ausência, há algo que se perde de vista quando se olha. Há uma nudez entrevista em sua verdade oscilante – nudez das coisas, do entorno, da natureza, como uma súbita desordem, um frenesi dos sentidos, um mergulho abissal no corpóreo.

Tira-se o véu. Revela-se o objeto erótico em sua crueza espantada – a fotografia cirúrgica de Marcelo e Tatiana é a articulação desse objeto luminoso em linguagem. O macabro aqui não aniquila o erotismo – como faz a pornografia -, ele o preenche, o alimenta, o consagra. Algo delicado e brutal, nasce justamente desse sentimento de violação, de profanação do objeto. Vida e morte, dor e êxtase comunicam-se em agonia numa estética que permeia um trabalho que sabe extrair a imensidão das coisas e faz da nudez – que é positivamente a imagem da morte – uma morte que encontra a glória em Eros.